Agostinho, Sobre a fé que não se vê

Raphael Rezende Fernandes

Na vida social, também se crêem em muitas coisas sem ser vistas. A bia vontade do amigo não se vê, mas se crê nela. Sem alguma fé, nem sequer podemos ter certeza do afeto provado do amigo.

I. 1. Alguns pensam que a religião cristã é mais digna de zombarias que de adesão, porque não apresenta ante nossos olhos o que podemos ver, senão que nos manda crer no que não vemos. Para refutar aos que presumem que se conduzem sabiamente, negando-se crer no que não se vê, demonstrar-lhes-emos que é preciso crer em muitas coisas sem vê-las, ainda que não possamos mostrar ante os olhos corporais as verdades divinas que cremos.

Em primeiro lugar, a estes insensatos, tão escravos dos olhos do corpo que chegam a se persuadir que não devem crer no que não vêem , temos que adverti-los que eles mesmos crêem e conhecem muitas coisas que não se podem perceber com aqueles sentidos. São inumeráveis as que existem em nossa alma, que é por natureza invisível. Por exemplo: que existe de mais simples, mais claro, mais certo que o ato de crer ou de conhecer que cremos ou que não cremos em alguma coisa, ainda que estes atos estejam muito longes do alcance da visão corporal? Que razão há para negar-se a crer no que não vemos com os olhos do corpo, e estes atos não se podem perceber com os sentidos corporais?

2. Porém dizem: o que está na alma, podemos conhecer com a faculdade interior da alma, e não necessitamos os olhos do corpo; porém o que nos mandais crer, nem o apresentais ao exterior para que o vejamos com os olhos corporais nem está dentro em nossa alma para que possamos vê-lo com o entendimento. Dizem estas coisas como se a algum se mandasse crer ao que já tem diante dos olhos. É preciso crer em algumas coisas temporais que não vemos, para que sejamos dignos de ver as eternas que cremos. E tu, que não queres crer mais do que vês, escute, um momento: vês os objetos presentes com os olhos do corpo; vês teus pensamentos e afetos com os olhos da alma. Agora, diga-me, por favor: como vês do teu amigo? Porque o afeto não pode ver-se com os olhos corporais. Vês, porventura, com os olhos da alma o que ocorre na alma do outro? E, se não o vês, como corresponderás aos sentimentos amistosos, quando não crês no que não se pode ver? Replicarás, talvez, que vê o afeto do amigo em suas obras? Verás, conseqüentemente, as obras do seu amigo, ouvirás suas palavras, porém terá que acreditar no seu afeto, porque este não se pode ver nem ouvir, já que não é uma cor nem figura que entra pelos olhos, nem um som ou uma canção que entra pelos ouvidos nem uma afeição interior que entre pela consciência. Somente te resta crer no que não podes ver, nem ouvir; nem conhecer pelo testemunho da consciência, para que não fiques isolado na vida sem o consolo da amizade, ou o afeto do teu amigo fique sem justa correspondência. Onde está o teu propósito o teu propósito de não crer mais do que vires exteriormente com os olhos do corpo ou interiormente com os olhos da alma? Já vês que teu afeto de moves a crer em um afeto que não é teu; e aonde não pode chegar nem tua vista nem teu entendimento, chega a tua fé. Com os olhos do corpo vês o rosto do teu amigo, e com os olhos da alma, vês a sua fidelidade; porém, não podes amar a fidelidade do amigo se não tem também a fé que te inclina a crer no que nele não vês; ainda que o homem possa enganar mentindo um amor e ocultando a sua má intenção. E, se não tenta fazer dano, finge a caridade, que não tem para conseguir de ti algum benefício.

3. No entanto, dizes, que se crês que é teu amigo, ainda que não possas ver seu coração, é porque o provaste em tua desgraça e conheceste sua fidelidade quando não te abandonou nos momento de perigo. Imaginaste-te, talvez, que temos que desejar nossa desgraça para provar o amor dos amigos? Ninguém poderia gostar da doçura da amizade se não gostasse antes da amargura da adversidade; nem gozaria do prazer do verdadeiro amor que não sofresse o tormento da angustia e da dor. A felicidade de ter bons amigos, porque não há de ser mais temida que desejada, se não pode conseguir sem a desgraça? E, porém, é muito certo que também que na prosperidade se pode ter um bom amigo, ainda que seu amor se prove mais facilmente na adversidade.

Se desaparecer a fé da sociedade humana, virá uma confusão espantosa

II. No entanto, se não cresse, não te exporia o perigo para provar a amizade. E, portanto, quando assim o fazes, já crês antes da prova. Em realidade, se não devemos crer no que não vemos, como cremos na fidelidade dos amigos sem tê-la comprovada? E quando chegamos a prová-la na adversidade, assim então é mais creída que vista. Se não é tanta a fé que, não sem razão, imaginamo-nos, ver com seus olhos o que cremos. Devemos crer porque não podemos ver.

4. Quem não vê a grande perturbação, a confusão espantosa que virá se desaparece a fé da sociedade humana? Sendo invisível o amor, como se amarão mutuamente os homens, se ninguém crê no que não se vê? Desaparecerá a amizade porque se fundamenta no amor recíproco. Que testemunho de amor receberá um homem, se não crê que o outro lhe pode dar? Destruída a amizade, não poderá conservar na alma os laços do matrimônio, do parentesco e da afinidade, porque também neste há relação amistosa. E assim, nem o esposo amará a esposa, nem esta ao esposo, se não crêem no amor recíproco porque não se pode ver. Nem desejarão ter filhos quando não crêem que mutuamente lhes vão a dar. Se estes nascem e se desenvolvem, também não amarão a seus pais; pois, sendo invisível o amor, não verão o que para eles abraça os corações paternos, uma vez que crer no que não se vê é temeridade repreensível e não fé digna de louvor. O que direi das outras relações de irmãos, irmãs, genros e sogros e, além disso, consangüíneos e afins, sem o amor dos pais a seus filhos e dos filhos a seus pais é incerto e a intenção suspeitosa, quando não se querem mutuamente? E não o fazem estimando que não tenha obrigação, pois não crêem no amor do outro que não o vêem. Não crer que somos amados porque não vemos o amor, nem corresponder ao afeto com o afeto, porque não pensamos que o devemos reciprocamente, é uma precaução mais molesta que engenhosa. Se não cremos no que não vemos, se não admitimos a boa vontade dos outros porque não pode chegar até ela nosso olhar, de tal maneira se perturbam as relações entre os homens, que é impossível a vida social. Não quero falar do grande número de feitos que os nossos adversários, os que nos repreendem porque cremos no que não vemos, crêem eles também pelo rumor público ou pela história, ou referente aos lugares onde nunca estiveram. E não digam: não cremos porque não vimos. Pois se o dizem, vêm-se obrigados a confessar que não sabem com certeza quem são seus pais. Já que não conservando nenhum recordo daquele tempo, creram sem vacilações aos que lhes afirmaram ainda que não se pudessem demonstrar por tratar de um fato já passado. De outra maneira, ao querer evitar a temeridade de crer no que não vemos, chegaríamos necessariamente no pecado de infidelidade aos próprios pais.

Motivos para crer. Cumprimento das profecias relativas à Igreja

III. Se não é possível que subsista, por falta de concórdia, a sociedade humana, quando recusamos crer no que não vemos, com quanta maior razão temos de dar fé às verdades divinas que não vemos; pois se as nega, não se profana a amizade dos homens, senão a religião sublime, para cair na eterna desventura?

5. No entanto dirás: ainda que não vejo o afeto do amigo, posso ter provas da sua existência. Vocês, em contrapartida, sem nenhuma prova nos mandais crer no que não vemos. Já é algo que me concedas que haja motivos para crer em algumas verdades ainda que não se vejam. Porque assim fica bem assentada esta afirmação: não tudo o que se vê deve ser crido. E rechaçada absolutamente esta outra: não devemos crer no que não vemos. Muito se equivocam os que pensam que sem provas suficientes cremos em Cristo. Que provas mais evidentes que o cumprimento das profecias? Portanto os que pensais que não há motivo algum para crer de Cristo o que não vistes, considerai o que estais vendo.

A mesma Igreja com voz maternal vos fala: Eu a quem admirais estendida por todo o mundo e dando frutos copiosos de santidade, nem sempre existi como agora estais vendo. Porém está escrito: Em tua descendência serão abençoadas todas as nações (Gn 22, 18). Quando Deus abençoava a Abraão, era eu a prometida, pois com a benção de Cristo me propago entre todas as gentes. A série de gerações, de testemunho de Cristo, descendente de Abraão. Provarei em poucas palavras: Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó, Jacó gerou doze filhos e desses procede o povo de Israel. Pois Jacó foi chamado Israel. Entre os doze se conta Judá, a qual os Judeus tomaram o seu nome; e de estes nasceu a Virgem Maria, que deu a luz a Cristo. Vês com assombro como em Cristo, isto é, na descendência de Abraão, são abençoadas todas as nações. E ainda temeis crer nele, quando o que deverias temer, na realidade é vossa falta de fé! Ponhais em dúvida ou negais o parto da Virgem, quando mais bem deverias crer que assim conviria que nascesse o homem Deus? Saiba que foi anunciado pelo profeta: Eis que uma Virgem conceberá e dará a luz a um filho e o chamará Emanuel, que quer dizer Deus conosco (Is 7, 14). Não podeis duvidar que a Virgem dê a luz, sem quereis crer que nasce Deus; que sem deixar o governo do mundo, vem em nós em carne humana, que faz a sua mãe fecunda sem tirá-la integridade Virginal. Assim deveria nascer o que sendo eternamente Deus, se fez homem para ser nosso Deus. Por isso falando dele, disse o profeta: teu trono oh Deus!, é pelos séculos eternos. E cetro de equidade é o cetro do teu reino. Amarás a justiça e aborrecerás a iniqüidade; por isso Deus; tu Deus, te ungiu com o óleo da alegria, mais que a teus companheiros. Com esta unção espiritual, Deus ungiu a Deus, ou seja, o Pai ou Filho. De aqui sabemos que o nome de Cristo vem de Crisma, que significa unção. Eu sou a Igreja da que se fala no mesmo salmo e se anuncia com o feito que ia vir: estará a rainha a sua Direita, vestida de ouro, rodeada de variedade, é dizer no templo da sabedoria, adornada com variedades de línguas. Ali me disses: Ouve filha, olha, inclina teu ouvido, esquece teu povo, e a casa do teu pai; porque o rei se prendeu da tua formosura, pois ele é o senhor teu Deus, e as filhas de Tiro virão com dons para adorar-lhe, os ricos do povo solicitarão o seu favor. Toda a glória da filha do rei vem de dentro; seus vestidos são brocados de ouro e variedades de cores. Detrás dela, as virgens são introduzidas ao rei; suas amigas o são apresentadas: virão com júbilo e com alegria, serão introduzidas no palácio real. A teus pais sucederão teus filhos; constitui-los-á príncipes por toda a terra. Recordarão teu nome de uma em outra geração. Por isso os povos te louvarão eternamente (Sal 44, 7-18). 6. Se não vês a esta rainha acompanhada da sua real descendência; se ela não vê cumprida a promessa que lhe foi feita quando lhe disse: ouve, filha, olha; se não deixou já os antigos ritos do mundo, obedecendo a ordem: Esquece teu povo e a casa do teu pai; se não glorifica em todas as partes a Nossa Senhor Jesus Cristo, segundo a profecia: O rei se prendeu de toda a sua formosura, pois Ele é o senhor, teu Deus; se não vê como as cidades dos gentis elevam súplicas a Cristo e oferecem dons, como foi anunciado: as filhas de Tiro virão como dons para adorar-lhe; se não se humilha a soberba dos poderosos, e pedem auxilio a Igreja a quem foi dito: os ricos do povo solicitarão teu favor; se não reconhece a filha do rei, a quem se ordenou dizer: Pai Nosso que estais nos céus (Mt 6, 9); y em seus santos não se renova interiormente de dia em dia (2Co 4, 16), aquela e quem foi dito: toda a glória da filha do rei vem de dentro; ainda que impressione aos estranhos com a glória dos seus pregadores com diversidade de línguas, como vestidos resplandecentes de ouro e variedade de cores; si, depois de difundir por todas as partes o bom odor de suas obras, não leva as Santas Virgens a Cristo, de quem a quem se diz: Detrás dela as Virgens são introduzidas ao rei; suas amigas o são apresentadas, e, para que não se imagine alguém, que são introduzidas a uma prisão, virão, disse, com júbilo e com alegria, serão introduzidas ao palácio real; se não dá a luz a filhos, e dentre eles venera alguns como pais e os nomeia prelados em diversos lugares, segundo o texto: a teus pais sucederão teus filhos, constitui-los-á príncipes por toda a terra; suas orações são pedidas a mãe, que é ao mesmo tempo, senhora e súdita; e por isto se afirma: Recordarão teu nome de uma em outra geração; se pela pregação desses pais que recordaram sempre a glória da santa mãe Igreja, não se congregam em seu seio tantas multidões de crentes que em suas próprias línguas a louvam sem cessar, conforme a profecia: por isso os povos te louvarão eternamente.

O que agora vemos cumprido, deve nos mover a crer no que não vimos IV. Se tudo isto não se demonstra com tanta evidência que os adversários, aonde quer que coloquem a vista encontram o fulgor que os obriga a confessar a verdade, dizem, e talvez, com razão, que não há motivo para crer no que não se vê. Se, pelo contrário, o que estais vendo, foi anunciado muito antes e se cumpriu com toda a exatidão; se a verdade se manifesta a si mesma nos fatos, passados e presentes, então, oh restos de infidelidade! , para crer no que não se vê, corai-os diante ao que vê.

7. Prestai-me atenção, dizei-os a Igreja; prestai-me atenção, pois me vês, ainda sem querê-lo. Todos os fiéis que haviam aquele tempo na Judéia conheceram estes feitos quando se realizaram: que Cristo nasceu milagrosamente da Virgem; que padeceu, ressuscitou, subiu aos céus, e, além disso, todas as suas palavras e obras divinas. Estas coisas, não vistes, por isso negai-vos em crê-las. Porém, olha, veja e considera atentamente as que estais vendo. Nem se os fala das passadas, nem se anunciam as futuras; mostram-se as presentes. Parece-vos pouco, imaginai-os que não é um milagre, e um milagre estupendo, que todo o mundo siga um homem crucificado? Não vistes o que foi previsto e cumprido sobre o nascimento de Cristo segundo a carne: Eis que uma Virgem conceberá e dará a luz a um filho; porém, vês cumprida a promessa que fez a Abraão: Em tua descendência serão abençoadas todas as nações. Não vistes os milagres de Cristo que a profecia anuncia com estas palavras: venha e veja as obras do Senhor, os prodígios que deixou sobre a terra (Sal 45, 9); porém, vejais que foi profetizado: Disse-me o Senhor, tu és meu Filho; eu hoje te gerei. Pede-me e te darei as nações em herança, e em teus domínios as potestades da terra. Não viu o que foi anunciado e cumprido referente a paixão de Cristo: transpassaram minhas mãos e os meus pés, posso contar todos os meus ossos; e eles me olham, me contemplam; repartiram as minhas vestes e lançaram sorte sobre a minha túnica; porém vejais o que foi anunciado no mesmo salmo e agora aparece cumprido: Acordar-se-ão do Senhor e se converterão a Ele todos os confins da terra (Sal 2, 7-8), e lhe adorarão todas as famílias das gentes; porque do Senhor é o reino, e Ele dominará todas as nações. Não vistes a profecia que se cumpriu, sobre a ressurreição de Cristo; porém falando no nome dele, o Salmista disse primeiramente do traidor e dos perseguidores: saíram fora e falaram reunidos, murmuraram contra mim todos meus contrários; contra mim pensavam mal; em meu dano disseram palavras injustas. E para demonstrar-lhes que nada conseguiam dando morte ao que iria ressuscitar, acrescentou estas palavras: Por ventura o que dorme não voltará a levantar-se? E um pouco depois, no mesmo salmo, anunciou do traidor o que está escrito no Evangelho: o que comia meu pão levantou o seu calcanhar contra mim; é dizer, pisoteou-me. E imediatamente acrescentou: porém tu, oh Senhor!, tem piedade de mim, faz com que eu me levante, e lhes darei o que você merece (Sal 40, 7-11; Jn 13, 18.) Isto se cumpriu: dormiu Cristo e despertou, é dizer, ressuscitou, Ele é quem no outro salmo, por boca do mesmo profeta, disse: acostei-me e dormi-me, e me levantei porque o Senhor me sustentava (Sal 3). Não viste isto, certamente; porém vê a sua Igreja, da que também se cumpriu o anunciado: Meu Senhor e meu Deus, a ti virão os povos desde os últimos confins da terra e dirão: Verdadeiramente nossos pais adoraram deuses falsos, vaidade sem algum proveito. Isto certamente o vê, queirais ou não. E ainda que imaginais que há ou que houve algum proveito no culto dos deuses falsos, no entanto, a inumeráveis povos gentios que haviam abandonado, derrubado ou destruído estas estátuas inúteis, ouvisteis-lhes dizer: verdadeiramente nossos pais nossos pais adoraram deuses falsos, vaidade sem algum proveito; se é o homem que faz os deuses, então não são deuses (Jr 16, 19-20). E não se ocorra pensar que estes povos vão vir a Deus no lugar divino determinado, porque se disse: a ti virão povos desde os últimos confins da terra. Entendei se podeis, que ao Deus dos cristãos, que é o Deus altíssimo e verdadeiro, não vêm os povos gentis caminhando, senão crendo. Isto mesmo anunciou outro profeta: o Senhor será terrível contra eles e destruirá todos os deuses da terra, e todos, cada um desde o seu lugar, e todas as ilhas das gentes lhe adorarão (So 2, 11). O que um diz: A ti virá todos os povos, o outro expressa desta maneira: Cada um desde o seu lugar lhe adorarão. Virão conseqüentemente, a Ele sem sair do seu lugar, porque crendo nele, encontrá-lo-ão no seu próprio coração. Não vistes o que foi cumprido e anunciado acerca da ascensão de Cristo: levanta-te, oh Deus!, sobre os céus; porém, vês o que acrescenta o profeta: e brilhe tua glória por toda a Terra (Sal 107. 6). Não vistes todos aqueles feitos passados referentes a Cristo, porém estes que estão presentes em sua Igreja, não podeis negá-los. Demonstramos a pregação daqueles e destes, porém não podemos demonstrar o cumprimento de todos, porque é impossível apresentar de novo ante a vista do passado.

A visão do presente é motivo da fé no passado e no porvir

v.8. Porém assim como as provas que se vêm, cremos nos sentimentos amistosos sem ser vistos, da mesma maneira, a Igreja que agora vemos, é indício do passado e antecipação e anúncio do porvir, que não se vê, porém se mostra nas mesmas Escrituras, em que ela é anunciada. No instante da pregação, nada era visível: nem o passado que já não se pode ver, nem o presente, que nem tudo é visível. Quando começaram a realizar-se estas coisas, desde as já passadas até as presentes, todas as profecias relativas a Cristo e a sua Igreja se foram cumprindo em série ordenada. A esta série pertencem: o juízo final, a ressurreição dos mortos, a eterna condenação dos maus com o diabo e a eterna glória dos bons com Cristo. Todas estas coisas foram igualmente anunciadas e hão de realizar-se. Por que não temos que crer nas coisas passadas e futuras que não vemos, tendo a prova de umas e outras nas presentes que vemos, e lendo ou ouvindo ler nos livros proféticos que as passadas, as presentes e as futuras foram todas anunciadas antes que se sucedessem? A não ser que os infiéis suspeitem que as escreveram os cristãos para dar maior autoridade as que já creiam, supondo-as prometidas antes de realizar-se.

Os livros dos Judeus provam nossa fé. Porque não foi exterminada a seita dos judeus

VI.9. Se possuem esta suspeita, examinem detenidamente os livros dos Judeus, nossos inimigos. Leiam neste local, todas as coisas da qual falamos, anunciadas de Cristo, em quem cremos, e da sua Igreja, que vemos desde os primeiros trabalhos na propagação da fé, até a eterna bem-aventurança do reino dos céus. Quando lêem, não lhes surpreenda que os possuidores desses livros, cegos pelo ódio, não entendam estas coisas. Pois esta falta de inteligência já foi anunciada pelos profetas, e deviam cumprir-se como todas as demais profecias, para que os Judeus, por secretos motivos da justiça divina, recebam o castigo merecido por suas culpas. Aquele a quem crucificaram e deram fel e vinagre, ainda que estivesse pendente no madeiro, por amor aos que ia tirar das trevas a luz, disse ao Pai: Perdoa-lhes porque não sabem o que fazem (Lc 23, 34), no entanto, a causa dos outros que por secretos juízos divinos, iria abandonar, anunciou muito antes por boca do profeta: Puseram fel no meu alimento, e quando tive sede, me deram a beber vinagre; seja sua mesa um laço e sua prosperidade um tropeço; apága-se a luz dos seus olhos para que não vejam e seus passos sejam sempre vacilantes (Sal 68, 22-24). Com os olhos sem luz vão por todas as partes, nevando consigo as provas luminosas de nossa causa, para que com elas esta seja provada e eles, reprovados. Este povo judeu não foi exterminado, senão disperso pelo mundo inteiro, para que, levando consigo as profecias da graça que recebemos, sirva-nos em todas as partes para convencer mais facilmente aos infiéis. Isto mesmo que vou dizendo foi anunciado pelo profeta: não os mates, porque não se esquecem de tua lei; dispersa-lhes com tua fortaleza (Sal 58, 12). Não foram mortos porque não esqueceram o que leram ou ouviram ler nas sagradas Escrituras. Sim, ainda que não entendam estes livros santos, esqueceram-os completamente, pereceriam com os ritos judaicos. Porque se os judeus não conheceram a lei e os profetas, para nada nos serviriam. Por isso não foram mortos, senão dispersos: para que suas recordações nos sejam úteis, ainda que eles não tenham a fé que salva. Em seus corações, são nossos adversários, e em suas Escrituras, nossos servidores e testemunhas.

Maravilhosa conversão do mundo à fé de Cristo

VII. 10. Ainda que não existissem profecias sobre Cristo e sua Igreja, quem deixaria de crer que brilhou de improviso para o gênero humano uma divina claridade, quando vemos os falsos deuses abandonados, suas imagens destroçadas, seus templos destruídos ou destinados a fins diversos, tantos ritos supersticiosos, profundamente arraigados nos costumes populares, abolidos, e que todos invocam a somente um Deus verdadeiro? E isto realizou um homem que foi pelos homens insultado, detido, atado, açoitado, despojado, coberto de apróbrios, crucificado, morto. Elegeu, para continuar a sua obra, uns discípulos humildes e ignorantes, pescadores e publicanos, que pregaram a ressurreição do Mestre e sua gloriosa ascensão, de que eles, segundo a própria declaração, foram testemunhas oculares; e, cheios do Espírito Santo, anunciaram este Evangelho em línguas que não tinham aprendido. Alguns dos que ouviram a boa nova, creram; outros se negaram a crer e se opuseram ferozmente aos pregadores e aos fiéis, que lutaram pela verdade até a morte, não fazendo mal, senão padecendo com resignação; e venceram, não matando, senão morrendo. Assim se converteu o mundo; assim entrou o Evangelho no coração dos mortais, homens e mulheres, jovens e anciões, sábios e ignorantes, prudentes e nécios, fortes e débeis, nobres e plebeus, grandes e pequenos; e de tal maneira se propagou a Igreja por todas as nações, que não há seita perversa contrária a fé católica, nem erro tão inimigo da verdade cristã, que não usurpe e queira gloriar-se do nome de Cristo. Por certo que não lhe seria permitido manifestar-se no mundo se a contradição não servisse para provar a verdadeira doutrina.

Ainda que nada disto fosse anunciado pelos profetas, como seria possível um homem crucificado realizar coisas tão grandes se não fosse um Deus encarnado? Mas havendo este grande mistério de amor seus presságios e pregações, que por inspiração divina o anunciaram, e cumprindo com absoluta fidelidade, quem estará tão privado da razão que diga que os apóstolos mentiram, pregando que Cristo veio conforme anunciaram os profetas, que não calaram a verdade dos feitos futuros referentes aos mesmos apóstolos? Destes disseram: Não há idioma nem linguagem no que não se escute a sua voz; sua pregação resoou em toda a terra, e suas palavras chegaram até os confins do universo (Sal 18, 4-5). Isto, certamente, vimos cumprido no mundo, ainda que não conhecemos em carne a Cristo. Quem,pois, que não padeça incrível cegueira intelectual ou que não esteja endurecido com incrível obstinação, recusaria dar fé as sagradas Escrituras, que anunciaram a fé de todo o mundo à fé de Cristo

Exortação a permanecer constante na fé VIII. 11. Fortaleça-se e aumente e vós, meus queridos, esta fé que já tendes ou que acabais de receber. Como se cumpriram as coisas temporais muito antes anunciadas, se cumpriram também as eternas prometidas. Não os deixeis seduzir nem pelos supersticiosos pagãos, nem pelos pérfidos judeus, nem pelo o que falam os hereges, nem tão pouco, dentro da Igreja, pelos maus cristãos, inimigos tantos mais perigosos quanto mais interiores. E, para que não vacilem os débeis, não guardou silêncio o profeta divino. E assim no Cântico dos Cânticos, falando o Esposo a Esposa, ou seja, Cristo a Igreja , disse-lhe: como o lírio entre espinho, assim minha amada entre as filhas (Ct 2, 2).Não disse entre as estranhas, senão entre as filhas. Quem tenha ouvido para ouvir, ouça; e enquanto a rede que foi lançada ao mar e recolhe toda a classe de peixes, como diz o santo Evangelho, é sacada à margem, isto é ao fim do mundo, afasta-se dos peixes maus, não com o corpo, senão com o coração; não quebrando as redes santas, senão mudando os maus costumes. Não seja que os justos, que agora aparecem misturados com os maus, encontram não a vida eterna, senão o eterno castigo quando são separados na margem (Mt 13. 9, 47-50).